8 de Março: Os caminhos para a igualdade entre gêneros no campo

4 de março de 2020 - 16:50

Texto e Imagens: André Gurjão

Noventa anos após o romance inaugural de Rachel de Queiroz, “O Quinze”, o sertão ainda é um território majoritariamente machista. Não apenas por quase 80% dos proprietários de terras cearenses serem homens, segundo o último Censo Agropecuário (IBGE), como também em razão das atividades mais lucrativas e a presidência das associações comunitárias estarem sob julgo de homens. Se “não se nasce mulher, torna-se mulher”, o roçado é espaço quase exclusivo dos meninos, enquanto as meninas se dividem entre as tarefas de casa e o quintal.

“Conceição tinha vinte e dois anos e não falava em casar. As suas poucas tentativas de namoro tinham-se ido embora com os dezoito anos e o tempo de normalista; dizia alegremente que nascera solteirona”, escreveu a cearense que resistiu ao título de feminista. A rota de fuga para independência ainda era a busca de um espaço na capital e estudar. E ainda é: se bem que algo insiste em brotar. Na linha tênue do horizonte, cada vez mais mulheres ocupam espaços e se destacam.

Paloma, uma jovem agricultora de Miraíma, é uma figura emblemática de transição desta nova ruralidade. Ela não pensa em casar agora, aos vinte anos, como também não quer abandonar o campo para morar na cidade grande. “Sou praticamente um homem”, define-se ao destacar que ajuda, sim, quando o assunto é plantar ou tanger as vacas até o celeiro. Já em relação à construção de cercas, capinar ou ordenhar vacas, a tarefa é exclusiva do pai num lar que envolve ainda outras duas mulheres.

Quando questionada se gostaria de conquistar o próprio lar e morar sozinha, independente de um dia vir a casar, são os homens quem melhor definem a hesitação: “é o medo do lobo mal”. Quase isso. Num ambiente isolado, onde mulheres vivem uma insegurança a mais, o anteparo da mulher é “se dar o respeito”. O controle da entrada do leite no tanque de resfriamento, por exemplo, é feito pela esposa do presidente da associação comunitária, após um caso de comportamento inadequado envolvendo peças de roupa.

Sucessão rural

A questão central é que a legislação federal prioriza conceder imóveis rurais abaixo de 200 hectares a agricultores familiares, independente do gênero. Na questão da reforma agrária não há política pública que estimule a titulação a terra em nome das esposas, como acontece na habitação social. “Quando é realizado o estudo em campo, as empresas contratadas por licitação conversam com os proprietários e, geralmente, quem possui o domínio sobre os documentos são os esposos e, em consequência, a terra vem titulada em nome deles”, atesta o superintendente do Idace, José Wilson Gonçalves.

Pelos números divulgados pelo instituto, vinculado à Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA), 18.429 mulheres garantiram o acesso a terra no período entre 2007 e 2019. Dessas, 14.051 beneficiárias foram atendidas com a titulação de propriedades rurais com extensão de até 10 hectares e 3.551 com propriedades medindo entre 10 e 50 hectares. Nas duas faixas com as maiores dimensões dos imóveis rurais, entre 50 e 100 hectares e acima de 100 hectares, um total de 827 mulheres foram atendidas com a política pública.

A proporção também significativamente maior entre as beneficiárias com idade acima de 60 anos (65%) e bem menor entre aquelas nas faixas etárias entre 30 e 60 anos (33%) e até 30 anos (2%). “Esses números sugerem que a maioria das mulheres que recebem a titulação da terra é em decorrência à herança de seus antepassados”, observa o superintendente. Desde 2007, foram titulados 100.889 imóveis rurais e beneficiados quase 400 mil cearenses.

Virando o jogo

Se por um lado a atuação do Governo do Ceará fez com que a presença feminina na regularização fundiária saltasse de 12,66%, em 2006, para 20,47%, em 2017, o Censo Agropecuário também demonstra um novo cenário sob a linha do horizonte. No primeiro período, a pesquisa do IBGE apontava uma participação das mulheres na agricultura familiar de 12% e mais de uma década depois o mesmo índice cresceu 7%, atingindo 19%.

O percentual é ainda maior quando o recorte envolve o número de mulheres que encabeçam projetos produtivos implantados pelo Governo do Ceará. “Em levantamento realizado nas atas de eleição das diretorias de associações, podemos verificar que dos 267 projetos produtivos financiados (pelo Projeto São José III), a participação de mulheres como presidentes e vice-presidentes se dá em 87 deles, representando 32%. Se considerarmos a participação de mulheres na diretoria, independente do cargo que ocupa, esse número passa a 201 (75%)”, enuncia um relatório setorial.

O resultado também é fruto da atuação da equipe técnica do projeto. No primeiro edital PSJ, 9 dos 39 projetos financiados tinham mulheres ocupando os cargos de presidente ou vice-presidente (23%). Já em relação à última etapa, a participação se dava em 60 dos 180 projetos financiados, representando 33%. “Para além do Projeto Paulo Freire, que em suas diretrizes estimula o empoderamento feminino, o corpo técnico da Secretaria trabalha para favorecer o protagonismo feminino. Quando são oferecidos espaços, as mulheres se destacam no campo e queremos estimular cada vez mais isso”, frisa o secretário. 

Ferramentas para inclusão

Ironicamente, um dos fatores que tradicionalmente favoreceu as mulheres estarem distantes dos cargos de direção de associações e cooperativas é, na verdade, uma virtude. “Em muitos casos, as mulheres são mais organizadas que os homens, o que acaba colocando-as em cargos mais burocráticos, enquanto as funções de liderança ficam com os homens”, explica Milena Camelo. Entretanto, para a secretária de Juventude da Fetraece há uma mudança tímida, embora visível nesta dinâmica sobre a presença de jovens mulheres em cargos de liderança.

O próprio fato das mulheres viajarem para venderem os produtos da agricultura familiar é algo transformador nesta dinâmica do campo, assegura. “70% das feirantes da Feira da Agricultura Familiar de Crateús são mulheres, o que é algo empoderador se nos colocarmos no lugar delas”, exemplifica. Além do contato direto com os clientes, as mulheres deixam o ambiente doméstico para participarem de mini-cursos, capacitações e oficinas que duram até três dias e levam mais conhecimento ao meio rural. 

Sobre funções sociais, a agricultora familiar Luana Rodrigues, de 24 anos, reconhece ter ouvido na infância o tipo de conselho que aponta o tipo de brincadeira dos meninos e qual o tipo seria o das meninas. Apaixonada por futebol, Luana não permitiu aos comentários muito espaço e foi até mesmo praticando esporte que chegou a conhecer o próprio marido. Sem nunca ter tirado leite de vaca com as próprias mãos, hoje, a jovem toma à frente o papel de operar uma ordenhadeira mecância adquirida pela família por meio de um empréstimo bancário.

O leite vendido para o Programa de Aquisição do Leite (PAA Leite) é a principal fonte de renda da família, que inclui ainda a sogra, o sogro e um sobrinho. A mesma fonte de renda foi também quem levantou uma casa nova na comunidade rural de Caiçarinha, município de Banabuiú, incluindo três quartos, sendo uma suíte, e um banheiro social. Questionada sobre qual futuro aguarda Analu, com 6 meses de gestação, Luana é tácita: “Hoje, a mulher pode ser o que ela quiser, seja do campo ou da cidade. Antigamente, as oportunidades eram mais complicadas”.